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Channel: A ARTE DE EDUARDO SCHLOESSER
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PARA MUITA GENTE, DESENHISTAS NÃO PASSAM DE BOSTA DE CACHORRO COLADOS NAS SOLAS DE SEUS SAPATOS.

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Conheço muitos desenhistas, artistas, designers, ilustradores, quadrinistas e sei lá mais o quê. Alguns chegavam a ter todos os títulos citados. Grandes astros de uma constelação de meia dúzia. Noventa por cento deles são uns tipinhos que se julgam muito maiores do que na verdade são. Claro, temos caras fantásticos, pessoas que me ajudaram, inclusive. Mas são excessões, não regra. Junte a isso, os editores ou diretores de arte, os críticos e jornalistas especializados na área e, pronto, você tem um ambiente composto de muitos caciques e poucos índios.
Se isto tivesse pelo menos criado um mercado que valorizasse quem trabalha a sério ainda vá lá, mas não é isto o que acontece. Desenhista, este eterno coitado, ainda é aquele cara que faz algo do qual podemos passar sem, ou sempre tem um que faz melhor e mais barato.
Depois de mais de 30 anos trabalhando profissionalmente em estúdios de produção, em agências de publicidade, produzindo campanhas, quadrinhos, ilustrações e o que mais você possa imaginar dentro da área, hoje ainda tenho que aguentar pessoas me pedindo desenho de graça. Quando a arte já está pronta, eu até cedo, não porque eu queira fazer o gênero gente boa, não é isso não, é que não me custa, uma vez que não vou precisar suar a camisa, o produto já está criado e eu sei que nem todo mundo tem grana pra bancar, e uma divulgada pro meu nome sempre cai bem.
Não faz muito tempo, um pessoal de teatro me pediu umas artes para promover um espetáculo. Não posso, disse eu, estes desenhos são de propriedade de tal editora, falem com eles, se liberarem, por mim tudo bem. A tal editora não liberou.
-Puxa, será que o senhor não faria outros pra gente?
-Posso sim. Custa $$$ cada arte.
-Nossa, tudo isso!?!
-Na boa, não tá caro não, costumo cobrar bem abaixo das tabelas do mercado.
-É que nosso orçamento tá muito reduzido, mas vou falar com o patrocinador e te retornamos.
-OK.
E nunca mais dão notícias. É incrível, mas isto acontece com uma frequência que vocês não imaginam.
-Quanto você cobra pra pintar meu retrato? Eu queria um desenho assim e assim, quanto é? É só eu dizer o preço e a pessoa nunca mais toca no assunto. Acho que elas gostariam que eu respondesse que é uma honra fazer a arte de graça, afinal isto não é trabalho, é diversão. Como se trata de traços e cores num papel não é para ser levado a sério.

Faz muito anos em São Paulo, meu irmão era residente em medicina e trabalhava com um renomado cirurgião que me encomendou umas ilustrações para um livro que ele estava escrevendo. O prazo era apertado, pois ele queria levar as artes para um congresso que haveria na Grécia dali a pouco tempo.  Acertamos o preço e lá estava eu varando noites, desenhando e aquarelando tripas. Na data de entrega do trabalho o tal professor não pode aparecer no local, mas deixou instruções com meu irmão para que eu pegasse um táxi e fosse até onde ele morava para levar os trabalhos e fazer possíveis correções. Dei o endereço ao taxista e lá fomos, ficava num local longe pra burro, um condomínio fechado de mansões. Passava das 21 horas e o cara do táxi errou o local duas vezes. Por fim chegamos. O professor conversou com o motorista e pediu que esperasse. O taxímetro ficou ligado. Entramos. Levei material para fazer os reparos necessários. Quando terminamos passava da meia noite. Ele fez o cheque e me pagou. Acertou o valor com o taxista - que não sei quanto foi - o que incluía me deixar em casa.
No dia seguinte, meu irmão me disse que o professor me achou muito careiro. Dá pra acreditar? O cara deve ter pago uma grana preta ao motorista de táxi por toda aquela operação e achou alto o valor pelas artes que ele publicou em seu livro, que aliás, foram bastante elogiadas, segundo soube depois.

Trabalho anda difícil, pelo menos por aqui.
Soube por um outro desenhista que tal fulano está agora desenhando Red Sonja para uma editora americana. Vi umas páginas (boas pra caramba).
-Esse cara deve estar ganhando uma grana legal!
-Ah, sim, 40 dólares por cada página finalizada.
-Quê?!? Só 40 dólares!?! Tá de brincadeira?
-É que ele tá começando agora.
-Mesmo assim. Já vi preços melhores aqui no Brasil!

Editores me ligam chorando as pitangas. Me pedem paciência para efetuar meu pagamento. A coisa anda ruim e tal. Tá ruim mesmo. Imagino que esteja complicado pra todo mundo. O que sei é que sem desenhista não existe um produto para eles colocarem no mercado. Sem desenhista o público não terá o que ler, seja uma hq ou um manual de como aprender o ofício.

Reparo que existe uma porção de gente querendo aprender a desenhar, hoje existem muitas oficinas, palestras e o que mais você imaginar, além é claro da internet que oferece scans de obras como as do lendário Andrew Loomis por exemplo e tutoriais disso e daquilo. Num tempo não muito distante teremos um monte de gente desenhando mas ninguém para ler o que eles ilustram. Parece até argumento de um episódio de "Além Da Imaginação".

Os desenhadores legais que conheci e que tantas dicas dividiram comigo se tornaram competentes  aprendendo na dura lida diária, lendo gibis, indo a museus, tentando na solidão de seus quartinhos criar algo parecido com o que faz seu ídolo, seja ele Kirby, Frazetta ou Rembrandt. Estudou por conta própria num período onde escolas formadoras deste tipo de profissão não existiam ou eram muito caras; um tempo em que não tínhamos tantos títulos disputando espaço nas bancas. Isso tudo para ter que passar por certas situações vexatórias.
É a vida.






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