Depois de alguns meses morando no Brasília Pálace Hotel, o apartamento funcional a que meu pai tinha direito finalmente ficara disponível, e foi com certa tristeza que mais uma vez nos mudamos, agora pra sentir pra valer as diferenças entre São Paulo e o Distrito Federal, pois no hotel sempre haviam acontecimentos um tanto peculiares que não nos deixavam submergir totalmente em uma nova e pacata rotina de vida. O tal apartamento situava-se na SQN 104, bloco "C", bem ao lado da escola onde já estudava desde o princípio do ano (os que me acompanham neste blog a mais tempo, hão de se lembrar da postagens sobre minha chegada a Brasília e meu encontro com o Raul Seixas).
Ficamos lá por cerca de um ano (fomos depois para a SQS 202) mas foram tantos fatos ocorridos ali que a impressão que dá é que foram no mínimo uns cinco anos. Eu precisaria de pelo menos mais umas duas postagens para relatar os casos mais pitorescos, sofri muito bulling aquele ano, brigava quase toda a semana, mas isto fica para uma outra vez, quem sabe; o objetivo real ao dividir com vocês estas lembranças é para falar do Antonio, um colega de sala de aula, que vez por outra vem se fazer presente em minhas reminicências, e isto por um motivo bem característico: ele tinha um problema de dicção que o impedia de proferir as letras "R" e "L" numa palavra. Analizando hoje, posso imginar que sua lingua travava, não chegando a bater a ponta no céu da boca, substituindo as referidas letras por um "V". O curioso é que só eu parecia notar isto.
O Antonio era um rapagão alto, encardido e mal-ajambrado, sempre com as roupas rotas e sujas, morador da Vila Planalto, metido a boa praça (e no fundo talvez fosse mesmo). Ele me chamou a atenção logo no primeiro dia de aula, quando entrou em sala como se fosse dono do lugar, a camisa aberta e as calças caídas deixando entrever a cueca (hoje é moda, mas não em 1975). A professora, uma moça muito bonita, de olhos verdes, fuzilou:
- Antonio, feche essa camisa menino!
- Tô cum cavor, fessova! Respondeu ele num tom debochado. E a camisa continuou aberta, ninguém ligou. Estranhei. Em São Paulo, no Caetano de Campos, isto seria inadmissível. Talvez o processo de desmantelamento da educação começasse ali, uma nova modalidade de ensino, com talvez mais "liberdade" para o aluno, teorias quiçá engendradas por educadores a la Roberto Freire e tutti quanti.
Não lembro como, mas fiquei próximo do Antonio, e cada vez que ele falava eu desatava a rir, acho que ele nunca soube o porque. Na boca dele esta frase saíria assim: " O candidato Vuís Inácio Vuva da Silva sevía um cava muito vegal se não fosse aqueva barba."
Era briguento, e cada vez que ele falava "desci o cacete naqueve cava" eu dava uma gargalhada. "Esse cava é vouco, fica rindo a toa, cava mavuco do cavalho!"
Certa vez, por um motivo fútil o Antonio parou de falar comigo "ou favar, como eve divia", e passou a andar com o Miguel, este foi o primeiro cara que se tornou meu amigo, pois ambos éramos estranhos ao Planalto Central, ele era pelo menos dois anos mais velho que nós, repetente, um indivíduo burrão e de grande porte, mulato sarará, com cabeça, mãos e pés enormes, desproporcionais ao resto do corpo, filho de militar. Ele e o Antonio não se davam por sei lá que motivo, deve ter ficado enciumado quando me via conversando com seu desafeto e se afastou. Os dois se associaram para me encher o saco. Davam ombradas quando passavam por mim no pátio, pisavam no meu pé, barravam minha entrada no banheiro e bobagens deste tipo. Depois cansaram e voltaram a falar comigo, cada um a seu tempo. Coisas de garotos.
Um fato que merece registro é que no período que ainda residia no Brasília Pálace Hotel, certa tarde, convidei o Antonio para tomar banho de piscina comigo. Como ele tinha um aspecto de menino de rua, o segurança do hotel e o maitre se manifestaram contra, eu disse que ele era um amigo da escola e a contragosto, permitiram. Apesar de ser bem maior que eu, dentro d´agua o cara pareceu encolher de tamanho, ficando sucetível às minhas brincadeiras, tinha medo de se afogar no raso.
Aquele ano acabou e eu continuei no ano seguinte na Escola Classe 104 Norte. O Miguel foi para o Colégio Militar (sabe-se lá como) e do Antonio nunca mais tive notícias. Mas o seu jeito próprio de se expressar o manteve em minha memória, tanto assim que aquele dálmata que aparece em "ZÉ GATÃO - PINTURA DE GUERRA", fala com a mesma dicção que ele.
É isto amigos e amigas, hoje não teve desenho, mas na próxima terá, se Deus quiser, como diria meu coleguinha Antonio, "a gente vai se favando, até qualquer hova".