Esta semana um querido amigo, médico, residente na minha saudosa Brasília me enviou um link de um canal do YouTube onde um rapaz dissecava uma HQ do Senhor Milagre, criação do eterno Jack Kirby. Segundo este meu bom amigo, a tal HQ lembrava a minha história de vida em muitos aspectos. Já tinha ouvido falar do tal quadrinho (acho que é de 2017) mas nunca li - pra ser sincero, conheço pouca coisa dos Novos Deuses, tenho curiosidade - e segundo o youtuber, a obra seria relativa à depressão; o Scott Free não aceitando a morte do irmão, entrava num vórtice de tristeza aguda que o induzia ao suicídio. Realmente tudo a ver comigo, de fato.
O que me leva a pensar um pouco sobre PHOBOS E DEIMOS, uma das minhas obras mais amargas; como quase ninguém leu e sequer sabe que existe, vamos recordar um pouco sua gênese: era o início do novo milênio e eu estava profundamente deprimido, enfrentando problemas, recém chegado ao nordeste do país, longe da minha mãe e irmãos, torturado por uma tendinite na mão direita, sem trabalho, sem dinheiro (fui sustentado pelos meus pais até que começasse a produzir novamente) e acima de tudo uma forte desilusão no que concerne a viver de quadrinhos no Brasil. Pouco antes de migrar para Pernambuco eu passei uns dias na casa do meu irmão médico em São Paulo e fui recomendado pelo Jotapê Martins (editor da Via Lettera, por onde saiu o ZÉ GATÃO - CRÔNICA DO TEMPO PERDIDO) ao Art & Comics onde fui muito bem recebido e minhas obras autorais muito elogiadas pelo Joe Prado (era ele o responsável em avaliar e enviar material brasileiro para o mercado ianque). Ele me deu um roteiro sobre um bárbaro e disse que se eu quisesse poderia criar algo curto com algum super. Chegando no Jaboatão me sentei na prancheta e me concentrei em duas tarefas, concluir a saga MEMENTO MORI e dar vida às páginas para o Art & Comics. Desenhei o roteiro do bárbaro e criei cinco páginas de uma do Hulk (sempre gostei do verdão). Não imitei nenhum artista, fiz do meu jeito, esse traço que lembra um pouco os quadrinhos undergrounds americanos de terror e sci-fi do final dos anos sessenta. Tudo feito, embalei e enviei. Depois de um longo tempo sem resposta eu fui até o orelhão da esquina ligar para o Joe. Parecia outra pessoa, distante, indiferente e disse que meu traço era expressionista demais para os americanos, caricato, até. Ah, e que eu não desenhava mãos direito. Mas que eu poderia treinar e tentar novamente, se eu quisesse.
Me senti um merda. No mesmo instante liguei para meu irmão, o melhor amigo, aquele que partiu para sempre, e desaguei minhas mágoas. Ele ouviu em silêncio e disse para eu não desistir. No entanto eu sempre soube que eu não conseguiria me adequar a certos padrões. Era meu sonho viver de quadrinhos, mas não desenhar o Batman ou Wolverine no esquema das grandes editoras, então eu me via em apuros. Claro, não fiquei parado e comecei a procurar trabalhos, me aproximar dos artistas locais e até tentei dar aulas e oficinas mas o resultado sempre era o mesmo: portas fechadas.
Assim, a minha tendência à melancolia começou a crescer e eu tentei escapar da única maneira que me era possível, criando histórias, e malgrado a dor na mão, dei corpo a uns roteiros (na verdade esboços de escritos em um velho caderno) e desta forma nascia Phobos e Deimos. Nele, o final trágico dos protagonistas nas sete narrativas era a minha forma de morrer sem dar cabo da minha vida.
Não posso deixar de dizer que Verônica foi (e é) um grande apoio, não houve pressão ou cobrança, ela pacientemente esperou até que eu me reerguesse e novamente começasse a fazer dinheiro com meus traços.
Phobos e Deimos não viu a luz do sol até o final de 2020, quando a Editora Atomic imprimiu 50 unidades.
Semana passada o Marcos Freitas, editor do livro, anunciou no Facebook a promoção dos dois últimos itens da obra com 50% de desconto - acho que ele fez isso para queimar estoque - e é bem provável que não tenha conseguido vender.
Não sei dizer se as mais ou menos quarenta pessoas que leram se deram conta do que havia ali, personagens comuns, humilhadas, envergonhadas, tragadas pela voragem de situações onde se viram envolvidas contra a vontade e das consequências de escolhas erradas onde pagaram um preço muito maior do que deviam.
Para mim, hoje, esse álbum que escrevi e desenhei há 15 anos atrás é mais atual que nunca; estou mais velho, a situação financeira nunca se estabilizou e outros problemas cresceram. A diferença fatídica é que agora não posso mais ir até a esquina e discar para o Gil de um orelhão qualquer, ele não está mais aqui. Eu continuo tentando segurar o leme deste barco num mar cada dia mais raivoso.